quarta-feira, 27 de julho de 2016

Perfil do Escritor: Augusto dos Anjos

Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte ? !

Ah ! Um urubu pousou na minha sorte !
Também, das diatomáceas da lagoa
criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte !

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do ultimo verso que eu fizer no mundo!

Trechos de Budismo moderno, de Augusto dos Anjos.

Falaremos um pouco do autor de alguns dos poemas mais interessantes da nossa literatura.
Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos nasceu em 20 de abril de 1884 no Engenho de Pau d’Arco, no atual município de Sapé, no estado da Paraíba. Foi alfabetizado e instruído até os dezesseis anos pelo seu pai, Alexandre Rodrigues dos Anjos. Em 1900, entra no Liceu Paraibano, em João Pessoa. Lá escreveu seu primeiro soneto: Saudade.

Hoje que a mágoa me apunhala o seio,
E o coração me rasga atroz, imensa,
Eu a bendigo da descrença em meio,
Porque eu hoje só vivo da descrença

À noite quando em funda soledade
Minh’alma se recolhe tristemente,
Pra iluminar-me a alma descontente,
Se ascende o círio triste da Saudade.

E assim afeito às mágoas e ao tormento,
E à dor e ao sofrimento eterno afeito,
Para dar vida à dor e ao sofrimento,

Da saudade na campa enegrecida
Guardo a lembrança que me sangra o peito,
Mas que no entanto me alimenta a vida.


Liceu Paraibano no início do século XX.

Sempre teve contato íntimo com a leitura, conhecendo pensadores que muito influenciaram sua obra poética e sua visão de mundo. Seus biógrafos costumam destacar os seguintes autores lidos pelo poeta. 
  • Herbert Spencer (1820-1903), filósofo inglês com o qual deve ter apreendido a a incapacidade de se conhecer a essência das coisas e compreendido a evolução da natureza e da humanidade.
  •  Ernst Haeckel (1834-1919), biólogo alemão que propôs a classificação Protista para os seres vivos. Deste cientista, Augusto deve ter se detido nos estudos sobre o reino biológico Monera e que a vida e a morte são fatos químicos.
Estes dois estudiosos eram grandes entusiastas das Teorias da Evolução e da Seleção Natural das espécies, de Charles Darwin.

  • Arthur Schopenhauer (1788-1860), filósofo alemão que deve ter lhe chamado a atenção para a necessidade de se libertar da vontade própria para o benefício do próprio ser humano. 
  • Era leitor da Bíblia, que provavelmente aproveitou para contrapor aos ideais iluministas e materialistas que emergiam no fim do século XIX e início do século XX, que negavam a religião como algo que possa explicar o mundo.

Curiosamente, Augusto dos Anjos conduzia reuniões mediúnicas e psicografava apesar de em sua poesia sempre haver ironias e críticas contra a religião de uma forma geral, com ênfase na crítica ao cristianismo.

Em 1903, ingressou na Faculdade de Direito do Recife, concluindo o curso em 1907. Neste ano, retorna para João Pessoa, onde passa a lecionar Literatura Brasileira em aulas particulares. Em 1908, é nomeado para o cargo de professor no Liceu Paraibano, mas é afastado do cargo em 1910 por ter se desentendido com o governador do estado. No mesmo ano, casou-se com Ester Fialho e muda-se para o Rio de Janeiro, onde foi nomeado professor de Geografia, no Colégio Pedro II.
Publicou seus poemas em diversos jornais e periódicos, lançando apenas um livro em vida, Eu, em 1912, causando espanto nos críticos pelo vocabulário grotesco, cheio de referências à putrefação.
Na reta final de sua vida, mudou-se para a cidade de Leopoldina, no estado das Minas Gerais, quando foi nomeado Diretor do Grupo Escolar Ribeiro Junqueira. No mesmo ano em que se mudou para esta cidade, faleceu de pneumonia após uma longa gripe em 12 de novembro de 1914. Morreu aos 30 anos de idade.
Após sua morte, o amigo Órris Soares organiza a publicação Eu e Outras Poesias, incluindo poemas não publicados em vida pelo autor.

Considerando o objetivo do nosso blog, antes de discorrer sobre alguns poemas deste importante poeta brasileiro, é necessário um questionamento:

Augusto dos Anjos é um escritor gótico? Bem, não há uma definição certa sobre o que faz uma poesia ou um conto serem góticos, mas geralmente assim consideramos quando o texto literário apresenta certos lugares-comuns como representações fantásticas e simbólicas que expressam certa angústia com uma melancolia densa, mesmo que não se faça referência a lugares considerados decadentes, antigos ou medievais como castelos, cavernas, casas abandonadas, etc.. Portanto, mais importante que apresentar estes locais físicos, um poema considerado gótico impactante deve apresentar um eu lírico (quem fala no poema) com uma angústia tão densa em relação à vida, muitas vezes através da antevisão da morte e uma incapacidade de agir no mundo. Todas estas sensações podemos encontrar na poesia de Augusto dos Anjos.

No entanto, sua poesia passou para a posteridade como um emaranhado de influências diversas como as escolas literárias parnasiana e simbolista, da poesia cientificista e, apesar disso, foi considerado pré-modernista. Por isso rotulá-lo como “escritor gótico” pode soar esquisito para muitas pessoas que não têm um contato mais íntimo com a subcultura gótica. No entanto, neste texto tentaremos pensar seus poemas desta maneira. São muitos os poemas que poderíamos analisar brevemente, então decidimos lhes apresentar algum menos conhecidos (mas nem por isso, menos angustiantes), como o poema “O Morcego”.

Meia noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

“Vou mandar levantar outra parede.”
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto ?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, á noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

Trata-se de um soneto bastante narrativo, sem muita referência a termos típicos da biologia ou imagens poéticas tão assombrosas e fortes se comparados a outros poemas de Augusto. Primeiramente, por que a escolha do morcego como metáfora para a “Consciência Humana?

Para quem já teve um morcego invadindo a casa, sabe como é difícil fazer ele sair. O mamífero voador costuma se debater no teto do cômodo que invade e nem adianta tentar espantá-lo com um cabo de vassoura, isso confunde mais os sentidos do bicho que, como sabem, é praticamente cego. Além disso, é um ser alado de hábitos noturnos, com uma aparência que não agrada a muitos seres humanos, associando-o ao sombrio e ao vampirismo, visto que algumas espécies de morcego se alimentam de sangue de outros mamíferos (no Brasil são mais comuns espécies que se alimentam se insetos e frutas). O trunfo deste soneto é nos guiar por uma narração que vai descrevendo exatamente essas atitudes e algumas destas características do morcego, para depois revelá-lo com uma criatura quase fantástica que, para a mente do eu lírico, representa a Consciência humana ou os pensamentos que fazemos de tudo para negar, mas que às vezes surgem para nos atormentar pouco antes do sono.

Uma foto de morcego
Não é possível saber se Augusto fez esta associação, mas podemos entender como uma mistura de realidade e sonho em que o a Consciência às vezes é tão incômoda quando surge à noite, no momento exato que se está para dormir. Por mais que se queira espantar os pensamentos que surgem neste momento, eles continuam insistentemente ecoando na nossa mente, nos impedindo de dormir. Por mais que você afirme “Não vou pensar mais nisso” ou, nas palavras do eu lírico, “Vou levantar outra parede”, nada pode afastar os pensamento incômodos. A noite parece despertar estes pensamentos mais incômodos, e acabamos por remoê-los até nos cansar e dormir. Ou não dormir, dependendo a intensidade com que eles nos invadem.

Augusto dos Anjos não é o primeiro a pensar animais alados de hábitos noturnos como metáfora para os pensamentos incômodos que nos atacam à noite. O artista Francisco de Goya possui uma gravura bastante peculiar sobre este tema.
O sono da razão produz monstros, de Francisco de Goya.

Um exemplo de soneto menos narrativo:

Vês?.'Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua ultima chi mera.
Somente a Ingratidão - esta pantera
Foi tua companheira inseparável !

Acostuma-te á lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fosforoAcende teu cigarro !
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Si a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija !

Versos Íntimos, de Augusto dos Anjos.

Em Versos íntimos, escrito em 1901, temos toda a angústia de Augusto. Nós interpretamos o poema desta maneira:

Na primeira estrofe, temos a associação de sentimentos humanos a figuras ferozes e que nos causam medo, como a pantera.

Na segunda estrofe, uma perspectiva que o ser humano precisa se tornar feroz e egoísta como os outros para sobreviver. Uma maneira bem sombria de ver o determinismo científico em voga na época, que postulava que o ser humano é influenciado pelo meio em que vive.

Na terceira estrofe, temos um momento de ansiedade enquanto se tenta relaxar (acender um cigarro) contrastando com a completa desconfiança em relação as pessoas mais próximas.

Por fim, na quarta estrofe temos a conclusão do ponto de vista pessimista em relação à humanidade construída poeticamente nas estrofes anteriores, quase como aconselhando o seu leitor a compactuar deste ponto de vista. Versos íntimos é de fato um mergulho no íntimo de Augusto dos Anjos e como ele observava o mundo ao seu redor. Aparentemente, Augusto colocou tanto de si em suas poesias, que as utilizou como uma definição do que ele era. Talvez por isso tenha intitulado seu único livro de poemas como “Eu”.

Algumas curiosidades:
  • A escritora Ana Miranda romanceou a vida de Augusto dos Anjos no livro A Última Quimera (Companhia das Letras).
  • O cantor Arnaldo Antunes chegou a musicar o poema Budismo Moderno, que podem ler no início deste texto. A canção se encontra no álbum Ninguém, lançado em 1995.
  • A poesia de Augusto dos Anjos encontra-se em domínio público, portanto vários de seus poemas são possíveis de se achar pela a internet.
  • Sugestão: procure comprar ou baixar o livro “Eu e outras poesias”, a experiência com a poesia de Augusto dos Anjos torna-se mais rica quando você lê o primeiro poema do livro, “Monólogo de uma Sombra”, antes de ler os seguintes.
  • Há um memorial dedicado ao poeta na cidade de Sapé, na Paraíba.
  • Há um museu em Leopoldina, nas Minas Gerais, na casa onde Augusto passou os seus últimos dias.

Fontes:


Anjos, Augusto dos. Eu e Outras Poesias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. 

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